Almanaqueiras: ou não queiras.

Almanaqueiras: ou não queiras.

quarta-feira, 28 de junho de 2017

enquanto o meu só aumenta

'Ao Cair da Noite' mostra por que o idealismo diminui com o tempo

Marcelo Coelho


Resultado de imagem para idealismo

O jornalista americano P. J. O' Rourke conta em que dia e hora se tornou conservador. "Foi às 23h59 do 4 de dezembro de 1997." Sua mulher dava à luz um bebê, e desde então triunfou o medo da mudança.

Se a temperatura do berçário diminuía, O'Rourke ficava preocupado. Mais tarde, suas convicções se dirigiram contra a estúpida mania dos ímãs de geladeira: e se a criança engolisse um?

Os programas infantis na televisão alarmavam o novo direitista. O que aconteceria se um tiranossauro roxo aparecesse no quintal? (Ele se referia a Barney, personagem que ensina as crianças a se abraçarem e a escovar os dentes.) Os pequenos espectadores do programa estariam indefesos diante de tal ameaça -e, por extensão, de todos os reais males do mundo.

Estranhamente, a circunstância de ter um filho pequeno não fez com que O'Rourke viesse a se preocupar com o aquecimento global ou com a indústria armamentista. Como típico conservador, ele tende a pensar no que está mais próximo, no que é concreto, no que é sensível (o "real"), e não tanto no que depende de argumentações menos imediatas.

A ameaça terrorista, assim, é "real": cada evento específico nada mais faz que confirmá-la. Já o desequilíbrio ecológico é uma "construção" generalizante -ainda que sem dúvida comprovada por diversos fatos, sobre os quais o conservador se torna, aliás, muito seletivo.

O relato de O'Rourke não pretende, em todo caso, oferecer uma argumentação irretorquível. Seu título -"Manual de Conservadorismo para Quem Não Pensa" ("The Unthinking Man's Guide to Conservatism")- corresponde a todo um programa, e está incluído num volume com textos de outra natureza ("Why I Turned Right", Threshold Editions, 2007).

Lembrei-me do artigo de O'Rourke depois de ver "Ao Cair da Noite", bom filme de terror psicológico que estreou agora em São Paulo.

Ameaçada por não sei que doença contagiosa e fatal, uma família se isola numa casa de madeira no meio da floresta. Bons americanos do interior, os três (pai branco, mãe negra e filho adolescente) sabem manejar armas de fogo. Um homem aparece, pedindo ajuda. A desconfiança é natural. Estaria ele contaminado? Vai trazer mais pessoas? O que ele pode oferecer em troca: gasolina, mantimentos, força de trabalho?

Não há espaço, vemos desde logo, para impulsos solidários. O pai e a mãe de Travis (Kelvin Harrison Jr.) pensam exclusivamente em sobreviver. Mais do que isso, pensam na sobrevivência do filho.

O rapaz irá perceber, ao longo do filme, até onde seus pais são capazes de ir nessa situação extrema. Como diz o slogan de "Ao Cair da Noite", o medo pode transformar pessoas normais em monstros.

Faltaria o toque de algum bom dramaturgo, como Harold Pinter ou David Mamet, para fazer desta produção de Trey Shults uma obra memorável. O filme terminou hesitando entre o suspense e o drama, mas funciona mesmo assim.

Os ideais esquerdistas desaparecem rapidamente, claro, em quadros de desespero, onde o que vale é o "cada um por si". A questão é saber se o egoísmo e a violência, comuns em tais situações, terminam sendo a atitude mais racional e vantajosa para todos -e se a vida vale a pena ser vivida quando seguimos radicalmente a lei da selva.

Natural que, com o passar do tempo, percam-se muitas ilusões sobre a bondade humana. Não acredito, sinceramente, que tenha demorado muito nesse processo. O primeiro dia na escola foi suficiente para que eu aprendesse sobre a brutalidade alheia.

O problema está nas convicções que temos sobre essa maldade: fruto de circunstâncias, apenas, ou algo que veio desde Adão e Eva?

Qualquer pai e mãe conhece os instintos egoístas de seu filho, e ao mesmo tempo não desiste da missão de educá-lo, e de lhe oferecer circunstâncias favoráveis ao seu desenvolvimento ético.

Nesse ponto, qualquer educador está em luta contra o famoso "pecado original". Ao mesmo tempo, diminui a fé oposta (e anticonservadora) que possa ter na solidariedade humana. É como se nossa capacidade de altruísmo -antes dirigida ao gênero humano em abstrato- se reorientasse na direção dos próprios filhos.

Ocorre que as ideias de fraternidade e justiça, como em alguns casos os imóveis e os relógios Rolex, também se transferem de pai para filho. O jovem herda as abstrações que seus pais abandonaram, parcialmente, em seu favor. Melhor que não herde as pistolas e carabinas também. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário