Almanaqueiras: ou não queiras.

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quarta-feira, 26 de abril de 2017

A árvore de Guernica, ali, está verde como nunca.

Guernica

Marcelo Coelho



Depois de tudo o que já se viu na Síria -para nada dizer de guerras anteriores e da própria bomba de Hiroshima-, fica diminuído, com o correr do tempo, o horror que o massacre ocorrido em Guernica, há 80 anos, é capaz de provocar.

O famoso quadro de Pablo Picasso fez muito, portanto, para preservar na memória mundial um ato de selvageria que -infelizmente- o acúmulo posterior de assassinatos em massa por todo o mundo acabou tornando rotineiro.

Ainda assim, o dia 26 de abril de 1937 não teria como não entrar na história. Pela primeira vez, uma cidade europeia sem alvos militares foi inteiramente destruída num ataque aéreo sistemático, vitimando apenas a população civil.

Os autores do bombardeio foram pilotos alemães, enviados por Hitler em auxílio do levante militar promovido por Francisco Franco (1892-1975).

Mesmo antes do nazismo, os alemães tinham se especializado nesse tipo de coisa. Usando principalmente zepelins, jogaram bombas sobre Londres, já na Primeira Guerra Mundial, mas sem muita pontaria, a partir de 1915.
Pequenas cidades turísticas na costa da Inglaterra, como Scarborough, já tinham sido bombardeadas por mar, com mais de uma centena de vítimas civis. Houve também os ataques de submarinos contra navios de passageiros: o Lusitania foi a pique em 1915, deixando cerca de 1.200 mortos, na sua maioria cidadãos dos Estados Unidos -país que nem mesmo estava em guerra com a Alemanha.

A teoria da "guerra total", muito em voga entre os prussianos, considerava que no mundo moderno não faz muita diferença se você mata soldados ou civis -já que todas as forças de um país estão em conflito com as de outro.

Como dizia o almirante Tirpitz, comandante da Marinha do Reich, "o sucesso numa guerra se mede não apenas pelas perdas que se podem infligir sobre o inimigo, mas quando se consegue diminuir sua disposição de continuar no combate".

Arrasar o moral do adversário, causando pânico e morticínio na população indefesa de uma cidade, tornava-se recurso legítimo a partir dessa visão -que, no limite, apaga as diferenças entre guerra e terrorismo.

Com 7.000 habitantes, a pequena cidade basca de Guernica tinha especial valor desse ponto de vista. Durante séculos, era como que um centro espiritual e político para os habitantes da região. Os reis da Espanha eram tradicionalmente obrigados a renovar, debaixo do carvalho sagrado da cidade, o juramento de que respeitariam as leis e os costumes locais.

Além de uma ponte e de uma fábrica de armamentos (e ambas foram poupadas pelo bombardeio), não havia nada de importante em Guernica para ser destruído, exceto sua simbologia.

No inferno da Guerra Civil Espanhola, o povo basco se destacava pela moderação. Amplamente católico, não se lançou à fúria anticlerical que, em outras regiões espanholas, levou militantes de esquerda a incendiar centenas de igrejas.
Os bascos se alinharam contra os militares golpistas liderados por Francisco Franco por uma razão muito simples: o governo republicano, legitimamente eleito, garantira uma relativa independência para a região -o que significava, por exemplo, o direito dos bascos de falar a própria língua.

Sai agora no Brasil o relato clássico da resistência basca ao fascismo de Franco e do massacre promovido em Guernica pela aviação de Hitler.

É "A Árvore de Gernika" (Companhia das Letras, 528 págs. R$ 69,90), publicada pelo correspondente do "Times" de Londres no país basco, G.L. Steer, em 1938. Suas reportagens, na época, foram essenciais para desmontar a gigantesca farsa que os franquistas tinham preparado para consumo da direita internacional.

Assim que apareceu a notícia do massacre, os generais de Franco afirmaram que tinha sido a própria população "comunista" de Guernica a responsável por incendiar a cidade. Visitando o lugar um dia depois do bombardeio, Steer pegou com as próprias mãos as cápsulas de bombas incendiárias fabricadas na Alemanha.

Às vezes com muitos detalhes técnicos, outras vezes com gracejos deslocados e excessos de "literatura", o livro é apesar de tudo um exemplo de jornalismo corajoso, cheio de empatia mas sem falsidades partidárias. Diante de um espetáculo inédito de horror e morte, o texto de Steer pulsa de vida em cada página. A árvore de Guernica, ali, está verde como nunca.

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