Almanaqueiras: ou não queiras.

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quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

mesmo saindo pelas laterais, vale a inspiração. Bethânia é verdadeira.

Maria Bethânia: 'Só me resta o palco. Vou lá e grito feito uma doida'

Cantora detalha seu processo de criação e lamenta a ascensão do conservadorismo 

POR 

Bethânia: ‘Vejo a gente querendo imitar o ruim. Estou morta de pena do Brasil’ - Leo Martins / Agência O Globo

Qual é a importância do ritual?

RIO - Antes de surgir no palco e gritar “feito uma doida”, como diz, Maria Bethânia entra numa calmaria ritualística. A cena é o abre-alas de “Abraçar e agradecer”, DVD (com versão em CD também), que chega agora ao mercado, encerrando as celebrações de seus 50 anos de carreira (em 2015). “Abraçar e agradecer” traz dois discos. No primeiro, está a íntegra do show de mesmo nome, que estreou por aqui em janeiro do ano passado, com músicas como “Começaria tudo outra vez”, “Rosa dos ventos” e “Viramundo”. No segundo disco, estão extras, incluindo cenas das demais comemorações em torno da data. Enquanto lança “Abraçar...” e começa a preparar um novo disco, a cantora baiana de 70 anos concedeu a seguinte entrevista ao GLOBO. E falou de seus rituais, do processo de criação, de influências e de política: “Temos uma natureza diferente da desses brancos europeus e americanos. Somos outra cor. E vejo a gente querendo imitar o ruim. Ah, me deprimo demais (...). Tô morta de pena do Brasil”.
Acho que me equilibra. Sou muito livre, solta, e é bom ter uma sequência de atitudes a tomar, ter hora para cada coisa... Isso me dá um norte. Chegar três horas antes é imprescindível para mim. Desde a hora em que saio de casa, a maneira como rezo, olho o tempo, vejo as pessoas, aquilo já vai me vestindo para a cena. Ninguém nunca me mandou nem ensinou. Achei um modo de me separar da rua. Não gosto de usar em cena o que uso na rua. Nada que me traga a rua. Quero só aquela caixa preta, que é a plateia, e está ótimo para mim. É meu paraíso.
No DVD aparece também um pequeno camarim montado ao lado do palco.
Os camarins, principalmente no Brasil, nunca são no andar da apresentação. Há muita escada, fios, passa-se por baixo, por cima, uma aventurazinha. E, quando se tem que passar por isso antes de entrar em cena, o diafragma vai embora. Tenho que parar, rezo, gosto de rezar, faço uma respiração e fico pronta para a hora de entrar. Aquele pequeno camarim é onde me troco no intervalo. Porque não daria tempo de fazer o percurso até o camarim, o trânsito engarrafado (risos).
Você tem rituais para criar?
O mais importante é o ócio. Ficar soltinha para filtrar o bom, o mau, o médio. Anoto o que vem à cabeça. Música, pensamento, livro, conversa, uma planta que vi, um problema que tenho que resolver. Vou anotando. Isso tudo faz parte para mim do que vou inventar. Tenho milhares de cadernos. E me perco, lógico. O Waly (Salomão) dizia: “Você é igual a mim, risca, escreve, anota tudo”. É uma imundície. Mas é um modo de organizar.
O que anda criando?
Estou levantando repertório para o próximo disco. A alguns compositores peço, para outros digo: “Tô começando a fazer, se tiver algo...”. Eles perguntam: “Já tem ideia?”. Digo: “Não, vocês é que vão me dar”. Neste momento estou com ideia nenhuma e com todas as ideias. Porque agora espero o que eles vão me dizer. Como intérprete, eles é que me passam os recados, o que está quente neles, vivo, precisando ser falado. Aí vem política, amor, dor, degradação, paraíso, vem tudo. E vai me ajudando. Adoro este momento, mas ultimamente tem sido mais difícil ter tempo para o ócio. Lembro quando fiz “Mar de Sophia”. Cheguei a Salvador, acordei muito cedo, sentei na varanda, em cima do mar, peguei um papel. Quero fazer alguma coisa sobre água, Dona Sophia (a poeta portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen), eu estava com os livros dela. Peguei o papel e fiz os dois discos, escolhi praticamente todos os poetas que queria ali. Parece que fiquei estudando, mas só sentei ali para olhar distraída.
Agora você está completamente mergulhada nesse novo disco?
Não, porque tem esse lançamento do DVD, depois vou para a Bahia participar de um show de Margareth (Menezes). No dia 9 recebo o título (de Doutora Honoris Causa pela Universidade Federal da Bahia). Como muda essa data... A faculdade foi ocupada, desocuparam. Farei uma leitura no dia 14. Depois, mesmo que queiram e que inventem, não vai dar. É Natal, período que fico em branco. Minha mãe morreu num Natal, não me serve não. Festejo o nascimento do Menino Deus todos os dias, prefiro. E também não sou muito de réveillon, essa gincana não me encanta. Então espero em Deus que a maluquice comece a invadir com mais força depois disso. Mas tenho recebido músicas lindas.
Nas canções “Mortal loucura” e “Era pra ser” (lançadas neste ano como singles, para trilhas de novelas), você trabalha com músicos mais jovens.
Sabe como foi “Mortal loucura”? Ouvi o disco da Elza (Soares). Fiquei louca. Falei para (José Miguel) Wisnik (a canção é um poema de Gregório de Matos musicado por ele): “Faz com os meninos que trabalharam com a Elza”. Fiquei muito impressionada com o trabalho deles. Elza não vou nem falar, sou perdida por ela. Com Gregório, tinha que ser uma moda de viola doida. E “Era pra ser”, canção linda da Adriana (Calcanhotto), ela disse que queria guitarra ou violão. Eu me lembrei de Pedro Sá. Depois, entrou Moreno (Veloso).
Pensa em trabalhar com músicos mais jovens no próximo disco?
Ainda não estou nessa parte. Mas que vou mexer, vou.
No DVD, há a informação que o Desfile das Campeãs da Mangueira foi exatamente 50 anos depois de sua estreia no “Opinião”. Como você vê essas pontas se encontrando?
Pois é, Kati (Almeida Braga, dona da Biscoito Fino) me falou. Isso é uma coisa mágica. É lindo ter acontecido assim. E tem uma coisa bonita. Desde que terminou o desfile, toda vez que eu tenho um aborrecimento sério, ou tristeza, vem baixinho: “Quem me chamou, Mangueira...”. (trecho do samba-enredo da escola). Aí abre, porque tem uma felicidade tão grande nisso... Algo que nunca alcancei, que vou alcançar talvez noutro patamar. Toda vez, se entristecer, se doer, aquilo vem assim. E aí eu sei que é maior do que tudo que senti, que vi, que vivi.
Você está prestes a receber um título de Doutora da Universidade da Bahia. Na Bienal de São Paulo, você lembrou que foi educada em escola pública. Como vê a forma que a educação vem sendo tratada pelo governo Michel Temer?
A primeira coisa que o governo fez foi tirar dinheiro da educação e da saúde. Aliás, todos fazem. Bota em obra, em avião, bota no... ia dizer um palavrão, mas não fica bom para uma senhora. Mas só vejo piorar. Ao mesmo tempo, existem sinais deslumbrantes, como uma escola no Piauí, embaixo de uma árvore, com os meninos entre os melhores de matemática do mundo inteiro. Como sempre, a vida floresce. Mas a educação no Brasil é desastrosa.
Você chegou ao Rio em 1965...
No auge da ditadura.
Exatamente. Como vê a escalada do conservadorismo hoje no Rio, no Brasil, no mundo? As vitórias de Trump, da direita francesa, de Crivella, que já fez declarações de intolerância com relação a religiões afro-brasileiras...
Agora, ele (Crivella) fala que vai governar para todo mundo, todas as religiões. E tem essa história de que artista é tudo vagabundo, piranha, que tira o dinheiro do povo. As pessoas não querem entender, não querem perder tempo. Tem que passar uma mensagem no WhatsApp, é tudo muito corrido. Essa rapidez de hoje interessa para muitas coisas, mas é um trator em cima de valores fundamentais. As pessoas se desequilibram, perdem a mão. Não por perversidade, mas pela ignorância e pela volúpia da facilidade. A eleição desse senhor americano, a votação na França que a direita ganhou... E quem quer ganhar mesmo é a extremona, a moça lá (Marine Le Pen) que quer que volte Joana D’Arc, que, coitada, era uma menina que queria namorar.
E o Brasil no meio disso?
Acho muito triste. Porque a gente é diferente de Europa, de Estados Unidos. A gente é caboclo, é índio. Eu vim de Maputo agora, e chorava de emoção lá. É igual a Santo Amaro. Uma pobreza sem fim e uma alegria sem fim. É como se dissessem: “Estou vivo, vou lutar”. Fui para uma escola pública em Maputo, onde me fizeram uma homenagem. Entrou um menino pequeno com uma guitarra, lindo, sozinho. Deu uns acordes e começou: “Sonho meu/ Sonho meu”. Eu me arrepio até agora. Vem Dona Ivone Lara, essa volta que a coisa deu até ali. Temos uma natureza diferente da desses brancos europeus e americanos. Nós somos outra cor. E vejo a gente querendo imitar o ruim, o que não deu certo. Ah, eu me deprimo demais. Só me resta o palco. Vou lá e grito feito uma doida. Todas as vezes que faço leitura falo disso. Mas acho que entra por um ouvido e sai pelo outro. Fico com pena. Tô morta de pena do Brasil.
Você acredita num futuro melhor para o país?
Acho que está longe.

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